Conheça a história do Instituto mais radical do Morro do Turano
Por Juliana Reis
Fonte: Acervo
“Um homem na estrada recomeça sua vida
Sua finalidade, a sua liberdade
Que foi perdida, subtraída
E quer provar a si mesmo que realmente mudou
Que se recuperou e quer viver em paz”
(Um homem na estrada)
É com Racionais MCs que iniciamos este texto, pedindo licença para a citação para que nos apresentemos. Histórias de superação, como ouvimos na música, podem ser mencionadas e devem ser celebradas. Mas, por mais ambíguo que possa parecer a quem nos lê, nos propomos aqui a imaginar e, sobretudo, colocar em prática a luta por uma estrada sem dificuldade de acessos, sem privações de liberdade. Um caminho onde qualquer pessoa possa escolher o que quer ser, em paz.
A exposição do trecho escrito por Mano Brown, no entanto, não é aleatória. Com ele, podemos buscar compreender intimamente a trajetória de Jefferson Quirino (35), cria do Morro do Turano, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. Nossa primeira publicação não é sobre Jeff, mas sim elaborada a partir dele, já que é por seu movimento inicial que hoje nos mobilizamos juntos por algo muito maior que nós, algo do tamanho grandioso de uma Favela Radical.
A organização surge como resposta a um coração inquieto, que se dispõe a pensar sentidos e produzir novas vivências em sua comunidade. Podemos dizer que, em 2014, foram as ondas do mar que trouxeram nosso propósito para a beira da praia e nosso projeto para dentro do morro. Tudo começou a borbulhar em cima de uma prancha de surf emprestada, quando Jefferson pôde experimentar pela primeira vez a sensação de deslizar dentro d’água.
Se seu caminho até aquele momento tivesse sido diferente, se soubesse que era possível, talvez fosse um competidor profissional do esporte àquela altura, talvez não, mas poderia escolher. Com o desejo de que as crianças e adolescentes de sua comunidade pudessem ter a mesma experiência transformadora, nosso projeto surge para democratização de acessos e permanece até aqui com o mesmo ímpeto. Não só de realização de sonhos, como também de construção deles. É preciso imaginar novas realidades para que possamos exercê-las.
Foi com aulas de surf gratuitas na praia do Arpoador que iniciou-se o processo de transformação do Morro do Turano na primeira Favela Radical do mundo. Não há dúvida de que os esportes são uma ferramenta potente de inclusão social, atuando em combate a desigualdade quando há incentivo. Além da formação de atletas profissionais, o contato com esportes exerce extrema influência no desenvolvimento de habilidades socioemocionais.
Autoconhecimento, autogerenciamento e relacionamento interpessoal são algumas destas competências, aspectos que quando dimensionados podem alterar realidades em curto e longo prazo. Entendendo o que a prática esportiva pode gerar não só individualmente, o projeto amplia cada vez mais seu campo de visão para outras possibilidades, como turmas de escalada e skate. Aprendizados que, até o momento, dificilmente são estimulados neste território de forma planejada e agregadora.
Além de fomentar atividades esportivas muito tempo afastadas do contexto diário de nossas favelas, nos dedicamos a capacitação no manejo e criação de tecnologias para que possamos utilizar e propor instrumentos que nos possibilitem transitar em diversas camadas de atuação, de forma ostensiva e palpável. Por isso, cursos como robótica e programação fazem parte do nosso quadro. Além destes, integramos à nossa ação a prática teatral e outras oficinas educacionais voltadas para a inclusão de jovens em setores ainda pouco democráticos no cenário brasileiro.
Não podemos deixar de reiterar o compromisso com a promoção da diversidade, necessária para uma sociedade mais igualitária e com maior garantia de direitos humanos fundamentais e inegociáveis. Ao promovermos educação para novas gerações, reformulamos o futuro sem a lógica da escassez de recursos, da exclusão e asseguramos a possibilidade de sonhar. É necessário que moradores da Favela possam aumentar suas autonomias perante a sociedade, indo de encontro ao estigma social baseado na violência e criminalidade vinculadas a esse lugar.
Como aprofundamento de nosso argumento, trazemos aqui alguns dados de ordem macrossocial para que pensemos suas causas e consequências. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontou que o Brasil ocupava a nona posição na lista de países que apresentam maior grau de desigualdade socioeconômica do mundo, no ano de 2020. Neste panorama, apenas 1% dos habitantes mais ricos do país detém quase um terço do total de renda nacional, como demonstra o Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado ao final de 2019.
De acordo com a Fundação Getulio Vargas (FGV) no estudo Mapa da Riqueza (2023), conclui-se que o contraste de renda ainda é bastante acentuado ao compararmos os estados brasileiros. Tal estudo, foi baseado em dados do último Imposto de Renda de Pessoa Física disponível (2022), onde identificou- se a disparidade de renda entre moradores de regiões distintas pelo país. A desigualdade impregnada há séculos em nossa estrutura social se evidencia também no recorte entre bairros e espaços habitacionais dentro dos municípios. O Rio de Janeiro, por exemplo, é uma das metrópoles que apresenta maior escala de discrepância, como demonstra o Mapa da Desigualdade (2020) feito pela Casa Fluminense.
Cabe ressaltar que a desigualdade social possui fortes demarcações raciais e de gênero. Ainda de acordo com o IBGE, na análise “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil ” (2022), existe um processo histórico de desenvolvimento que vulnerabiliza em grande escala populações de cor preta, parda e povos indígenas. O estudo mencionado especifica detalhadamente a situação destes cidadãos ao abordarmos mercado de trabalho, renda, educação e gestão. Em todos estes pontos, pessoas brancas apresentam resultados mais satisfatórios, com maior nível de escolaridade, participação nas decisões públicas e segurança, se comparados a outros grupos racializados.
Fonte: Helena Barreto (Acervo)
Quando se trata de gênero, percebe-se que mulheres pretas e pardas estão mais expostas à violência doméstica, insegurança financeira como chefes de família e apresentam pequena participação na gestão pública. Como exemplo de tal disparidade sexista, ao analisar uma mesma região geográfica, o salário das mulheres negras equivale à metade da remuneração recebida pelos homens brancos desempenhando a mesma atividade econômica, em apontamento mencionado no Mapa da Desigualdade (2020).
Conforme notamos em levantamento feito no último ano pelo Data Favela em parceria com a Central Única de Favelas (CUFA), estima-se que haja 17,1 milhões de pessoas vivendo em favelas no Brasil, sendo que 67% se autodeclaram negros, portanto 11,5 milhões de pessoas pretas e pardas.
O cenário exposto possui diversos enraizamentos que se retroalimentam de forma a reforçar privilégios e minimizar movimentos contrários a isto. Para Achille Mbembe, filósofo e historiador, como abordado em seu livro Necropolítica , as populações negras que, principalmente, vivem em lugares marginalizados são vítimas de um aniquilamento sistemático que as impedem de exercer a vida em plenitude por estarem na base da hierarquização racial existente em nossa sociedade.
Neste sentido, percebemos que a subalternização da Favela na pirâmide social é um dos tentáculos de um mecanismo secular de segregação, o racismo estrutural brasileiro. Como nos explica Silvio de Almeida, em seu livro Racismo Estrutura l:
“O racismo — que se materializa como discriminação racial — é definido por seu caráter sistêmico. Não se trata, portanto, de apenas um ato discriminatório ou mesmo de um conjunto de atos, mas de um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas.”
Não vemos ainda uma reparação histórica pautada em políticas públicas que seja compatível com as reais necessidades do Brasil, devido a tamanha desproporção na garantia de direitos básicos. É por isso que procedemos de forma radicalmente contrária ao que nos revelam os inúmeros dados sociais.
Unimos as aprendizagens inerentes à Favela, como a adaptabilidade essencial para vivenciar a complexidade ali existente, aos conhecimentos e práticas ainda elitizados, impulsionando a elaboração de soluções estratégicas pensadas pela Favela para a Favela. Radicalizar não tem ligação somente com os incentivos aos esportes radicais, sobretudo, é adotar uma postura decisiva em relação a uma realidade que precisa ser transformada com urgência.
Nossas ações refletem não apenas no Morro do Turano ou nas vidas de alguns jovens, mas sim na cidade como um todo, movimentando toda estrutura na meta de caminharmos juntos e chegarmos a lugares antes inimagináveis. Uma rede de colaboradores, parceiros, voluntários, alunos e famílias, que segue aumentando seu alcance para que todos os talentos que brotam nas Favelas possam ser desenvolvidos e aparentes.
Fonte: Helena Barreto (Acervo)
Jeff, apresentado no início deste texto, o impulsionador da nossa radicalidade, certa vez comentou: “mães pretas da Favela, pais pretos operários, jovens pretos empreendedores, crianças pretas ancestrais de uma geração que ainda não nasceu, estão pavimentando uma estrada sem cancela para os que vem depois.” Quando nos disse isso, já estava escrita a parte introdutória desta publicação, sem que soubesse, ele já era para nós o homem na estrada. Entendemos o recado, são muitos os que vem abrindo caminho, diversos, na intenção de alterar rotas que foram historicamente impostas. Ninguém é só um na nossa estrada.
Finalizamos por aqui, reafirmando nosso compromisso enquanto coletividade a disseminar novas possibilidades de vivências, indo contra qualquer tipo de apequenamento e de apagamento. Espalhar dentro e fora da Favela o que o mar nos soprou anos atrás quando começamos a atuar com as aulas de surf: o mundo é imenso e também é nosso. Nossa praia é cheia de sonhos, realizações, afetos e potências. Aqui cabe geral. Somos Favela Radical.